sexta-feira, 14 de março de 2014

Nostálgica, ma non troppo

Não sei por quê, mas hoje acordei algo nostálgica. Lembrei-me de ti, perguntei-me por onde andarás, se ainda estarás vivo. (Com a tua profissão nunca se sabe, se é que alguma vez se sabe alguma coisa.)

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Conhecemo-nos ainda eu frequentava o Secundário. Eu começara a minha actividade sexual há relativamente pouco tempo e só tinha andado por piças entre o indigente e o medianamente capaz. Tu eras oito anos mais velho, já trabalhavas e tinhas uma competência sexual e um conhecimento do corpo feminino como nunca eu antes experimentara. Começámos a namorar: um escândalo, dada a diferença de idades. E, em circunstâncias particularmente melindrosas para mim, que não vem ao caso detalhar, tornámo-nos, não apenas amantes, mas verdadeiramente próximos. Lembras-te?

Então eu entrei na Universidade e mudei-me para o Porto. Dois meses depois de eu me instalar na Cidade Invicta, tu visitaste-me pela primeira vez. (Tinhas estado fora de Portugal em trabalho.)

Apanhaste-me à saída da faculdade. Já era tarde, não deu para passarmos em casa a aplacar a fome um do outro, seguimos directamente para um jantar de curso com que já me comprometera. (Sendo mais velho e muito bonito e charmoso, fizeste enorme sucesso entre as minhas colegas.)

A noite continuou no Piolho. Estava lá um grupo de alunos de Erasmus e, aproveitando a tua ausência, um belga meteu conversa comigo. Era anódino, diria que quase pálido, noutro contexto passar-me-ia despercebido, mas era agradável e soube-me bem desenferrujar o meu francês depois de tantos anos. Já de volta, entretiveste-te a emborcar uísques uns atrás dos outros, cozinhando um ressentimento mudo. (O teu defeito, algum terias.)

A certa altura, soltaste:

— Quando é que o fedelho franciú desampara a loja?!

— Não é francês, é belga. E a loja talvez não queira ser desamparada — rematei, irritada com o teu tom de autoridade.

Voltaste para o teu copo, até que, num movimento que seria balético se não fosse primitivo, te atiraste ao rapaz. Não me lembro a que ponto chegou o vias-de-facto, porque em breve estáveis os dois no olho da rua, entre grande confusão.

Eu deixei-me ficar, indisponível para arbitrar disputas neandertais. Quando finalmente saí, bastante mais tarde, estavas à minha espera, no carro. Ignorei-te e segui o meu caminho, contigo atrás de mim em marcha lenta, tentando convencer-me a entrar:

— Para onde é que vais a pé a esta hora?

— Apanho um táxi!

— Não sejas infantil, Méssaline! Entra.

— Infantil, eu?!

A verdade é que estava frio e não tinha grande dinheiro de sobra na carteira. A contragosto, entrei.

— Para onde? — perguntaste.

No primeiro instante não percebi a pergunta, mas logo me lembrei. Com pouco mais do que monossílabos, fui dando as orientações para a residência universitária. Pelo caminho, tu desfiavas o rol de argumentos supostamente justificativos da tua atitude. Eu, amuada, interrompia o mutismo apenas para um «Vira aqui».

Chegámos à residência. Saí, batendo a porta do carro com força. Baixaste o vidro e perguntaste:

— Posso subir contigo?

Fiz-te um olhar que dispensava palavras. Virei costas e tu ficaste a ver-me desaparecer no interior do edifício.

No dia seguinte, ao fim da tarde, lá estavas de novo à saída da faculdade. Fingi não te ver, tu voltaste a insistir, eu voltei a entrar no carro.

— Pensei que o amuo já te tivesse passado.

— Pensaste mal. Deve ser da ressaca.

Tu reciclaste os argumentos da véspera, agora mais mansinho. Eu mantive-me muda até que te cansasses. Só quando te calaste é que eu falei:

— O que quero que percebas, Pedro, é que sou eu quem decide com quem me relaciono, sexualmente ou de outra forma. Eu não sou propriedade tua. Estou contigo enquanto isso me dê prazer. Se é para fazeres cenas tristes, armares-te em macho-alfa, estou fora.

Por essa altura estávamos já bastante perto da residência universitária. Com ar casual, disse-te:

— Este não é o caminho para minha casa; eu vivo na Baixa.

Lentamente, paraste o carro e olhaste para mim, os teus olhos progressivamente mais abertos, num misto de incredulidade e reconhecimento. Eu, serena:

— Ontem à noite deste-me boleia para a residência dos alunos de Erasmus. [pausa dramática] Passei a noite a foder com o belga.

Desviaste o olhar e, em silêncio, fixaste-te no volante, sem pestanejar.

És cruel — silabaste por fim.

— É para que saibas que não mandas em mim — respondi, secamente.

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Este episódio não terminou a nossa relação — definiu a nossa relação. Fomos amantes por mais dois anos, até que te troquei inapelavelmente por outro. Pouco depois deixaste o país e nunca mais te vi.

3 comentários :

  1. Gostei, um registo diferente dos anteriores mas um mui interessante e esclarecedor auto-retrato que já se vinha a mostrar ao longo do tempo.
    Mas não diria nostalgia, mas sim o relembrar de algo, não com vontade de ser repetido mas apenas para reforçar as aprendizagens que se vão tendo ao longo do tempo.
    Continua a seres tu e não mudes.
    Beijos

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    1. Merci, J. Pierre.
      Sim, não estou certa de que fosse nostalgia. Arrependimento não foi, de certeza, nem vontade de voltar atrás (fosse para fazer diferente ou fazer de novo), mas a verdade é que me recordei deste episódio e perguntei-me por onde andará (se é que ainda anda) o Pedro... Como ficava bem no título, chamei-lhe nostalgia...
      Bisous!

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  2. Também recordamos momentos que nos definem enquanto pessoas e nos levaram ao que somos hoje. Talvez este tenha sido um dos que...

    Beijo d'(Ela)

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